Estava lendo um livro chamado "100 MELHORES CONTOS DE CRIME E MISTÉRIO: DA LITERATURA UNIVERSAL" Organizado por FLAVIO MOREIRA DA COSTA e me deparei com muitos contos irreverentes dentre eles O ÁS DO AZAR do autor inglês C. HEDLEY BARKER (do século XX).
Vou transcrevê-lo completo aqui ( apenas o conto porque o livro é imenso ^^):
O ÁS DO AZAR
C. HEDLEY BARKER
(1894 - ? - Inglaterra)
Devia ser insuportável para Herbert Dawlish o fato de que, se a garçonete não tivesse sido tão lenta em servi-lo, certamente ele não teria cometido aquele assassinato.
Dawlish dispunha apenas de dez minutos e estava realmente com fome. Por isso, entrou apressado numa lanchonete e pediu uma xícara de chá e um pastel. E lá se foi a gerçonete despreocupada e sem o mínimo de pressa transmitir o pedido enquanto Herbert Dawlish remexia-se no banco, nervoso e impaciente. Deve ter consultado o relógio pelo menos umas dez vezes no período de cinco minutos. Quando finalmente foi servido, tinha só dois minutos para engolir o lanche e apanhar o trem para Herne Bay.
Chegou esbaforido à plataforma da estação, com o trem começando a partir. Com os lábios apertados, sinal de sua contrariedade, pois logo compreendeu que não mais poderia subir, como sempre fazia, direta-mente para o vagão-restaurante, ainda mais que aquele trem não tinha corredor ... Isso significava que ia perder a costumeira partida de baralho.
O trem logo ganhava velocidade. Dawlish segurou a maleta com força e saiu em desabalada carreira, já achando que se deveria dar por feliz, agora, se conseguisse entrar no trem, em qualquer vagão que fosse. Com um salto espetacular, alcançou o estribo do último vagão, em meio aos gritos dos funcionários da estrada de ferro. Ficou então uns segundos se equilibrando, ofegante, os pés juntos, para logo em seguida abrir a porta do carro e deixar-se cair no banco com um profundo suspiro de alívio.
No banco em frente ao seu, viajava um homem de aparência vulgar, rebuscado no vestir, com uma pequena ferradura de ouro pregada na gravata e sapatos de ponta abrup¬tamente quadrada. Falou o que as pessoas geralmente falam nestas ocasiões: " ... por um triz ... ", '... correr tão rápido na sua idade não é nada fácil... ", e assim por diante. Começou ainda a lembrar uma outra situação semelhante, mas na qual o protagonista, um tal Sam Briggs, não teve a mesma felicidade do que ele, Dawlish, e caiu entre o trem e a platafor¬ma. E para completar, acrescentou um macabro pós-escrito:
- Foi uma coisa horrível! Nunca mais quero ver coisa igual!
Herbert Dawlish, naquele momento tão distante quanto Júpiter da idéia de poder vir a cometer um crime, encarou o homem que, no entanto, ele iria matar. Não poderia suportar por muito tempo pessoas falastronas e tolas, e aquele sujeitinho parecia-lhe agora o exemplo mais bem-acabado deste gênero de gente. No entanto, quando o homem sugeriu um jogo de cartas, Dawlish esqueceu-se de tudo e imediatamente ficou entusiasmado. Tinha verdadeira paixão pelo carteado.
- Tenho um baralho comigo - disse, enfiando a mão no bolso. Seus dedos porém tocaram em algo frio e áspero, que ele tirou para fora com um sorriso embaraçado. Colocando sobre a mesa uma pistola automática, disse em tom de brincadeira:
- Não se assuste. Não sou um pistoleiro. Comprei a pistola hoje na cidade. O senhor entende, pertenço ao clube de tiro de Herne Bay e eles acabaram de criar o departamento do revólver. Um esporte fascinante.
O outro concordou com a cabeça.
- Dá licença? - e pegou a arma, examinando-a com olhos de especialista. - Muito bonitinha - foi o comentário. - Bastante pesada, puxa vida!
- Ah! Sim ... Comprei também algumas balas. É muito segura essa arma. Está travada.
Vamos jogar? Conhece o Soixante-dix? É o jogo ideal para duas pessoas.
- Suá .. .?
- Setenta, em outras palavras. É uma espécie de ...
- Ótimo, chefe! Vamos a ele. Setenta! Sim, é um jogo muito comum na França ... Eu me lembro durante a guerra ...
- Quer cortar?
Dawlish deu as cartas.
- Quanto, a rodada? - falou baixo, envolvendo o outro num rápido olhar de análise.
- Bem, cinco xelins ... Que tal?
Dawlish se surpreendeu. Era bem mais do que costumava apostar, mas calculou que bem poderia ganhar e, então, não seria nada mau ... Deu as cartas de três em três e de duas em duas. E o jogo começou.
Não demorou muito para Herbert Dawlish perceber que aquele sujeito com ferradura na gravata não era um iniciante em matéria de baralho. Tinha o mesmo método elegante de embaralhar e dar as cartas dos jogadores profissionais. Lambia rapidamente os polegares, e as cartas escorregavam entre os dedos, ágeis como se estivessem lubrificadas.
Dawlish começou a perder, mas não desanimou: queria ganhar.
Cinco... dez... quinze... trinta e cinco .. cinqüenta ... Acabou perdendo seis libras. Um rubor de tristeza surgiu nas maçãs do rosto. Procurou se animar bebendo um grande gole de uísque, da garrafa-de-bolso que sempre trazia consigo. Estalou a língua e concentrou-¬se novamente, com uma expressão som-bria.
Quando o trem chegou a Chatham, as seis libras tinham se transformado em quarenta e seis. Dawlish se ferrara de vez, mas continuava tentando recuperar o que perdera. Um temor ia lhe apertando o coração. Perdera demais... Muito mais do que podia se permitir ... Era dia quatro, o aluguel ainda estava por ser pago, e tinha ainda outros compromissos que precisavam ser saldados com o dinheiro que acabara de perder ...
Quando chegou a setenta libras, Herbert Dawlish jogou o corpo para trás e enxugou com a mão trêmula o suor que lhe escorria pelo rosto. Estava perdido e mal pago, e já não controlava os reflexos do canto da boca. Sua aparência, na verdade, não era das mais agradáveis.
- Acho que não posso mais continuar... – mur-murou. - Perdi até o último centavo que tinha ...
O adversário, que assobiava baixinho uma canção da moda, parou bruscamente, encarando Dawlish com uma expressão facial dura.
- Verdade? - perguntou. - Azar seu, companheiro. Mas foi um bom joguinho, não foi ? Pois é ... são os ossos do ofício!
- Escute - disse Dawlish, complemente humilhado -, sei que isso não se faz, que é pedir demais, mas ... será que você poderia me dar esse dinheiro de volta? Só por pouco tempo; quero dizer, mais tarde eu irei lhe restituir ... Agora, porém ... hoje ... eu ... eu ...
O homem de aspecto vulgar encarava Dawlish com um olhar de muita surpresa. De repente, deu uma sonora gargalhada.
- Ora, muito bem, cá estou eu rico! - disse. - Vou falar para a patroa quando chegar em casa. Ela vai escancarar os olhos. Não, companheiro. Nada feito. Não sou do Exército da Salvação.
- Mas ... me deixe explicar - suplicou Dawlish, aflito. - O senhor não está com¬preendendo ... É como se ...
- Ora, ora! Vamos colocar um ponto final nesta história, meu velho. Você não devia fugido da saia da babá, isso sim! Hei! que ...
- Levante os braços! - disse Dawlish, encarando-o com uma expressão feroz, e apontando a arma para ele. - Mãos ao alto!
Até aquele momento, Dawlish não tinha a intenção de cometer crime algum. Ape¬nas queria assustar o sujeito e fazer com que ele concordasse em lhe devolver pelo menos metade do dinheiro ... Estava sem controle. Decididamente ele não podia voltar para casa, encarar a esposa e contar a ela a história das setenta libras perdidas. Mas armas de fogo são coisas perigosas para se brincar com elas.
O homem contraiu as sobrancelhas, semicerrando os olhos, e deu um rápido e inesperado pulo para o lado, ao mesmo tempo em que Dawlish, surpreso ou assustado, fechou os olhos e apertou o gatilho.
A morte às vezes é chocantemente rápida e inesperada. Em poucos segundos, Dawlish tinha a seu lado um cadáver, que se despencou no chão como um saco vazio. Bem no meio da testa, um horrível buraco azulado ...
Fazendo um enorme esforço em relação a si mesmo, Dawlish obrigou-se a reagir imediatamente e pensar em como sair daquela situação.
Resolveu então jogar o corpo para fora do trem, mas ao perceber o relógio de pulso da vítima teve uma idéia. Atrasou os ponteiros para as cinco e vinte e cinco. Achou que assim poderiam pensar que o relógio tivesse parado com o baque do corpo na estrada. E um relógio marcando cinco e vinte e cinco (a menos que encontrassem o cadáver imedia¬tamente) poderia sugerir que tivesse caído de um trem anterior àquele.
Assim sendo, abriu a porta do vagão, olhou com cuidado para ambos os lados e, com o trem numa velocidade de mais de quarenta milhas por hora, atirou para fora os restos do homem de aparência vulgar e rebuscado no vestir.
No dia seguinte, Venner, o homem da Scotland Yard, estava no trem das oito e quarenta, em direção à cidade. Ele e mais dois outros receberam Dawlish, gritando os gracejos de sempre. Havia dez anos, os quatro jogavam cartas durante o trajeto, todos os dias menos nos fins de semana e feriados.
- Venha logo pra cá, seu tratante ... Onde está o baralho? - gritaram para Dawlish.
- E onde é que você se meteu ontem à noite, na volta?
- Acabei me atrasando - disse Dawlish. - Precisei correr para alcançar o trem.
Vocês leram nos jornais? O assassinato no trem das cinco e dez?
Smith, que já embaralhava as cartas de Dawlish, concordou com a cabeça.
- O pobre coitado estava todo arrebentado - disse ele. - O rosto completamente desfigurado, dizem. Imagino que nem teve tempo de sentir nada. Você soube alguma coisa a mais sobre o caso, Venner, além do que saiu nos jornais?
Venner esboçou um breve sorriso.
- Ouvi o suficiente - disse ele -, mas não posso falar. E vi o corpo, cerca de duas ou três horas depois do crime. Eles o trouxeram de carro, de Herne Bay.
- Escute aqui, velho Dawlish - falou Smith -, este baralho não está completo.
Está faltando o ás do azar.
Smith costumava chamar o ás de espadas de ás do azar porque espadas sempre significavam aborrec-imento, na linguagem das cartomantes.
- Acho que ficou no meu bolso - disse Dawlish.
Mas sentiu seu corpo todo gelar quando viu o olhar repentinamente sério do policial que acompanhava sua inútil busca, mais ainda quando Venner tirou uma carta do próprio bolso e disse:
- Não. Aqui está ele, a menos que eu esteja enganado.
Pousou o ás de espadas em cima da mesinha ... e era o ás que faltava no baralho de Dawlish.
- É mesmo, por Júpiter! Aqui está ele - disse Smith. - Com os diabos, como conseguiu tirá-la, seu velho trapaceiro?
Venner olhou firmemente para Dawlish, e levantou-se. Em seguida, segurou-o pelo braço.
- Dawlish - disse ele -, isso me dói como ferro em brasa, mas preciso fazê-lo. Você está preso. Este ás de espadas foi encontrado na manga do paletó do sujeito assassinado.
Tradução de Alves Moreira
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