Um olhar dissonante
Atriz Denise Stoklos encontra o geógrafo Milton Santos para conversar sobre os 500 anos do Brasil e sobre a peça 'Vozes Dissonantes', destaque do Festival de Curitiba - VALMIR SANTOS - da Redação
O mineiro João Guimarães Rosa (1908-67) escreveu que "a vida traz a esperança mesmo no fel do desespero". Em tempos de ideologias flutuantes e muros invisíveis, suas palavras são como estacas _metáfora perfeita para o diálogo que se segue entre o geógrafo Milton Santos, 73, e a atriz Denise Stoklos, 41.
Santos é um dos autores que Stoklos cita em seu novo espetáculo, "Vozes Dissonantes". A montagem teve sua estréia nacional adiada em SP, duas vezes, por causa de uma contusão que a atriz sofreu no pé esquerdo. Virá a público finalmente nos dias 22 e 23, no Festival de Teatro de Curitiba.
Reunidos a convite da Folha, no final do ano passado, Santos recebeu uma Stoklos bem diversa daquela que se vê nos palcos: ela estava com o pé engessado e apoiava-se em muletas. A conversa aconteceu na modesta sala de Santos na USP, onde é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
"Vozes Dissonantes" recorre a filósofos, políticos, escritores e cidadãos que brandiram, cada um a seu modo, um tanto da dignidade que é possível vislumbrar nesses 500 anos de Brasil. Estão lá, por exemplo, Filipe dos Santos, Manuel Beckmam, Maria Quitéria, Antonio Bento, Luiz Gama, Frei Caneca, Lauriana Maria e Vicente Tavares da Silva.
O baiano Santos e a paranaense Stoklos falaram de teatro, universidade, cultura e problemas sociais, sem esmorecer a esperança no "presente do futuro".
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Milton Santos - Quando é que você formulou essa idéia de que o Brasil tem de ser repensado de forma autônoma?
Denise Stoklos - Eu tive sorte de ter 18 anos em 68, de estar na universidade naquela época.Nunca fui líder estudantil, nunca fui presa, torturada ou exilada por imposição. Mas convivi com colegas que tinham liderança e com os quais eu entendi que não era possível pensar o Brasil de uma forma macro, porque tudo naquela época era tão difícil, pequeno e limitado. E isso me acompanhou por todo o tempo, desde que sai da universidade e comecei minha vida teatral, vindo para São Paulo e Rio. Quando comecei a ser vista como uma boa atriz na juventude, o único caminho era tornar-me intérprete de novela de sucesso. Não havia possibilidade de encontrar companhias ou grupos que desenvolvessem uma linguagem própria, o medo era grande...
Santos - ...Era a manifestação da cultura própria dificultada pela emergência da indústria cultural...
Stoklos - ...Exatamente. Repetir a indústria cultural era o único desenvolvimento aceito, apropriado a qualquer ator, diretor ou autor que quisesse continuar aqui. Era muito insatisfatório para mim, que escrevi minha primeira peça aos 18 anos, sobre o tema da mais-valia. E não poderia escrever sobre outra coisa: aquilo era fruto da minha geração, não da minha autoria.
Santos - Quer dizer, era a vontade de afirmação da cultura nacional como afirmação do povo brasileiro. Talvez esses 500 anos pudessem ser úteis para isso...
Stoklos - ...Ou pelo menos que a gente não pudesse passar por isso tudo de novo...
Santos - É curioso. Penso que nas ciências humanas temos o mesmo problema. A diferença é que eu levei meio século para descobrir isso, e você descobriu mais rapidamente... A maneira como interpretamos o Brasil e o mundo é empobrecida na universidade porque somos extremamente copiadores _primeiro da Europa e agora dos EUA. Não se trata de recusar o pensamento que vem de outros países, mas há uma maneira própria de ver o mundo e a si mesmo. É isso que distingue as culturas e dá nervo aos povos. Nós não chegamos a ser universais porque não somos suficientemente brasileiros. Relendo suas peças, encontrei esse ponto que nos aproxima, que é retirar do país as suas próprias forças para entender o mundo e melhorar o Brasil. Estamos atravessando uma fase de desmanche de muita coisa. Isso nos deixa preocupados e, ao mesmo tempo, nos dá força para enfrentar a tarefa.
Stoklos - Quando li pela primeira vez o seu livro "A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção" (ed. Hucitec, 1996), tentei captar o seu raciocínio de geógrafo e descobri verdadeiras epifanias. Por isso que eu cito tanto o seu pensamento, mesmo com receio de fazer uma interpretação errada ou superficial da sua obra. O senhor proporciona ao mesmo tempo o rigor do pensamento e o convite à análise crítica. Acho muito interessante, por exemplo, quando o sr. diz que não estamos vivendo uma época da comunicação, como se apregoa por aí, porque comunicação é emoção.
Santos - Esse aspecto mostra também a diferença entre o artista e o homem da universidade na direção da verdade. O grande artista é livre e sabe que, se não houver emoção, ele não se aproxima da verdade. E o homem da universidade imagina que tem de reprimir a emoção para produzir. As ciências humanas, brasileiras e latino-americanas, acabam não interpretando os respectivos países porque olhamos para a interpretação que é dada a outra história. Como está claro no seu texto "500 Anos - Um Fax de Denise Stoklos para Colombo" (1982), por exemplo, a troca do espelhinho pelo ouro. Quer dizer, a gente busca se espelhar apenas e toma isso como se fosse uma riqueza intelectual. Seu trabalho no palco é uma cruzada. Minha impressão é que ele repercute algo que é profundo na alma brasileira e está buscando intérpretes... A cultura tem de vir com o território, com o povo, com a história se fazendo.... É um conjunto que inclui possivelmente essa preguiça intelectual, essa comodidade de pegar os espelhos e usá-los adequadamente.
Stoklos - E a gente raspa, assim, as palavras suas... Pega aquilo e se agarra como se fosse uma bóia no naufrágio. Quantas vezes um simples pensamento nos conduz a praias mais iluminadas... Volto ao seu pensamento da emoção, de que o pobre, o destituído, ele se comunica por causa da emoção, por estar com a emoção... Eu não fui instruída para trabalhar com isso. Era complicado lidar com a emoção, principalmente porque vivíamos uma época difícil. As coisas nesse país têm a aparência e o significado fica por baixo, que é muito mais forte. Só que as coisas não mudaram, mesmo com essa chamada democracia legitimada pelo voto, que não significa nada. É pior, porque traz o fantasma desse "legítimo"...
Santos - ...É um consumo eleitoral...
Stoklos - ...Esse distanciamento entre a emoção e a leitura do real também nos criou uma dificuldade para se aproximar da nossa própria emoção. Houve essas pequenas sequelas, mas dá para reajustar. É a emoção, afinal, que está determinando que a gente não queira desistir e se entregar ao cinismo que todos os convertidos ao neoliberalismo assumiram, de que "é assim mesmo", "é mais um passo", "estamos evoluindo", "esse é o movimento global", "as novas leis são assim mesmo", enfim, é um cinismo absoluto. Não tem graça não ser cidadã, não ter compaixão, não ter reverência, enfim, tudo que nos é dado como único patrimônio, único no sentido de bom, de uno, não de pouco, de menos. E seu trabalho, professor, também nos pede essa emoção.
Santos - Aliás, foi uma descoberta recente. A maior parte do tempo eu era refreado. Recordo-me dos anos em que ensinei na França e nos EUA, entre as décadas de 60 e 70, e a minha volta ao Brasil, quando retomei contato com as pessoas daqui. Fui intelectual na Europa e nos EUA sem ser cidadão, era regido pela razão, pelo esquema. A descoberta dessa nova condição, dessa epistemologia da existência, como estou chamando agora. Quer dizer, o existir como condição para ver o mundo, e isso inclui, em primeiro lugar, a emoção. Porque a razão reduz a força de descobrir, porque só a emoção nos leva a ser originais. Não só a emoção, claro, mas por meio dela é mais depressa. Propor uma coisa nova na universidade é muito difícil, embora seja o lugar da proposição do novo. Essa força, digamos, de esquecer, de ser original, só a emoção permite. E ela então passa a ser um dado do pensamento, não é a razão que produz o grande pensamento. E aí é preciso caráter. Uma reinterpretação da sociedade brasileira em movimento permite ver, digamos, uma outra coisa, um futuro mais perto. Nós fomos tratados e educados para examinar o chamado presente, não imaginando que o futuro está aí, embutido no presente. Na realidade, cada ato nosso é presente, agimos em função do futuro. A ação é presente, mas a aspiração dela é o futuro.
Stoklos - O educador Paulo Freire já falava disso: só tem futuro quem tem presente. Essas pessoas são mutantes. Não estou falando daqueles que queimam índios ou dos chamados "mauricinhos", "patricinhas", que são apenas uma reprodução dos modelos que se conhece. Mas estou falando dos novos, que têm compaixão... Num país como o nosso, quem não tem compaixão está morto, literalmente.
07/03/2000
Autor: VALMIR SANTOS
Origem do texto: Da Redação
Editoria: ILUSTRADA Página: 5-6
Edição: Nacional Mar 7, 2000
Legenda Foto: Stoklos em "Um Fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo"
Crédito Foto: Divulgação
Observações: ENTREVISTA
Vinheta/Chapéu: ENCONTRO
Assuntos Principais: CULTURA; MILTON SANTOS; DENISE STOKLOS; ENCONTRO
Na continuação da conversa com Denise Stoklos, Milton Santos define ofício da arte de representar